segunda-feira, 25 de março de 2019

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LA COMMEDIA É FINITA - Clima (2019)

Produzido por Romulo Fróes e Clima
Direção artística: Romulo Fróes
Gravado nos estúdios YB por Carlos “Cacá Lima”
Assistente de gravação: Frederico Gomes
Mixado e editado no Fine Tuning por Daniel Bozio
Masterizado por Carlos “Cacá” Lima
A&R: Maurício Tagliari
Label manager: Benoni Hubmaier
Projeto gráfico: Mono_Julio Dui
Fotos de capa e encarte: Louie Martins
Figurino: Giovana Moretto
Todas as faixas editadas por Alternetmusic



Faixas:
01. La commedia é finita (Clima)
02. Passarinhos perdidos (Clima / Nuno Ramos)
03. Carcará sem fome (Clima / Nuno Ramos)
04. Vem pro papai (Clima / Nuno Ramos)
05. Puro não (Clima / Nuno Ramos)
06. Eu não duro (Clima / Romulo Fróes)
07. Não mete a mão_ vinheta (Clima / Nuno Ramos)
08. Coco (Clima)
09. Cão andaluz (Clima / Nuno Ramos)
10. A noite (Clima)
11. Não tem perdão (Clima / Romulo Fróes)
12. E a batata? (Clima / Nuno Ramos)
13. Não mete a mão (Clima / Nuno Ramos)

14. Eu sei que ele foi (Clima)

Clima_ La Commedia é Finita (2019)
Por Leonardo Davino

O Dobrador de sinos

As canções de Clima miram a desadjetivação, ou melhor, miram o excesso, o desperdício de adjetivos utilizados para o entendimento deste Brasil pa-tro-pi-cal. A saber, a palavra "desperdício" aparece três vezes nas letras do disco La Commedia é Finita. Duas vezes em "Cão andaluz" (Clima / Nuno Ramos) - "Desperdício de um astro"; "Desperdício de uma bruxa" - e uma vez em "Eu sei que ele foi" (Clima) - "Do que é que ele morreu? Desperdício". Se as duas primeiras citam a profusão de montagens surrealistas do cinema de Luis Buñuel e Salvador Dalí, o excesso de luz que cega; a segunda convoca o ouvinte para a reflexão sobre o excesso imagético natimorto deste país. A referência cinematográfica não é à toa. Há mais transliguagens aqui. Em La Commedia é Finita, Clima apresenta um ensaio verbivocoperformático sobre os sons, imagens e palavras que compõem a nossa vida sensível. País que não é país: imagens, visões, capricho. E faz isso criando uma persona cancional cuja alma pode ser encarada como a ânima em pena de Canio, protagonista da ópera "Pagliacci", de Ruggero Leoncavallo (1892), autor da famosa frase que Clima tomou para título de seu disco-ensaio-projeto: "La commedia è finita".

No entanto, se na ópera é Canio quem pronuncia a frase-diagnóstico ao assassinar Nedda, sua mulher, dando fim à encenação, a mesma frase aparece no disco em seu prólogo, ou seja, na primeira canção, a que dá nome à obra de Clima. Temos aqui uma condensação - o mote - da trama do disco em frases, versos, sons e ritmos que voltaremos a ouvir ao longo da audição: por exemplo, mergulhada sob os samples e ruídos, ouvimos a atriz Helena Ignez dizendo "Sub-planeta, planetazinho vagabundo, o sistema solar é um lixo", uma de suas falas no filme Sem Essa, Aranha (1970), de Rogério Sganzerla. Sem contar as badaladas de sinos. "Por quem os sinos dobram?", perguntaria John Donne, e depois Ernest Hemingway, e depois Raul Seixas. É o absurdo da (sempre iminente) guerra civil. São também os sinos de Pagliacci, de quando Canio estremece em si o desejo de vingança e revela-se demasiado humano. Lírica (um crime passional) e sociedade (um universo desencantado). Imagens sonoras dançam para o ouvinte. O palhaço sou eu. O palhaço somos nós: "Eu não presto pra coroa eu não presto pra cara", canta o sujeito de Passarinhos Perdidos (Clima / Nuno Ramos) sem querer tomar partido. Do meio dos ruídos surge também a voz de Juçara Marçal em vocalizes de algo que nasce, que morre, agoniza, quer vingar. O samba? A respiração dá o tom ritualístico. Anunciação. Agouro. Lamento. Desejo. A eterna busca do núcleo duro da existência, tão presente na obra de Clima e seu caos dançante: "Eu só sei que estou fora do pão das estrelas", cantará mais adiante.

Abre-se o convite: "Dessa vez quem vai pagar, vai pagar a diversão, vai viver a vida dentro do meu colchão", escreve Romulo Fróes, diretor artístico do disco, em Eu Não Duro (Clima / Romulo Fróes). Retornam os "Passarinhos perdidos" que "cantam a rima da glória com a minha miséria". Cria-se "um mini-céu comum" para sujeito e ouvinte, como sugerido em Puro Não (Clima / Nuno Ramos). Estabelece-se um pacto do diagnóstico a ser cantado e declamado nos pouco mais de quarenta minutos do projeto cancional de Clima. O ouvinte já sabe, o sujeito cancional também, resta agora glosar o mote-título: metaforar. "Um filho vivo no mundo o que seria?", pergunta em Não Mete a Mão (Clima / Nuno Ramos). Ousamos responder: desperdício.

Se aberto às intervenções do ouvinte, o disco de Clima precisa ser urdido em exigências para que este ouvinte não ingênuo não se sinta ludibriado. "Dou minha carne pro vento, o meu vento é de fome" canta em Passarinhos Perdidos, ave-carcará que é. De tanto comer (desperdício!), enjoa. Seu canto é o resultado de uma azia referencial: "E a mulher se farta, quando tudo se oferece ao amor, ao ator, ao pastor ao cantor", diz o Carcará Sem Fome (Clima / Nuno Ramos). Múltiplas citações. Vários diálogos internos. Dito de outro modo, o sujeito cancional de La Commedia é Finita incorpora a angústia que move Canio, o não ingênuo, o que sabe da traição. O nome do disco é a senha de acesso para ouvirmos um sujeito cancional estranho, surreal e absurdo porque obviamente humano. "Ninguém vê, só que tá na cara", canta o sujeito na já citada Não Mete a Mão. Talvez seja isso, e "Passarinhos perdidos na minha janela, cantam a rima da glória com a minha miséria, contam que o tempo do ato é o tempo da espera, e o que resta pra ti é cimento e matéria" (Passarinhos Perdidos). O sujeito cancional narrador combina lírica e tragédia, drama e épica embaralhando com rara beleza os gêneros, os fios da emergência e da crença. Urge desabrir o olho: "Uma vidente sem um olho é poesia" (Não Mete a Mão). Vida coletiva e experiência subjetiva são tocadas com o sentimento ambivalente necessário à apreensão do Brasil, essa "brutalidade jardim" oswaldiana que encara os problemas de frente, mas que transcende em sua complexidade inata: desperdício.

Aliteração: "Asas, asas, as asas, as asas tão frágeis" (Passarinhos Perdidos). Estamos num tempo prévio ou póstumo à cristalização do Brasil que conhecemos? "Quem fez a gente, se a gente não é um lixo, se a gente é preta, é mongol, é dor de dente" (Não Mete a Mão). Essa indefinição move o sujeito cancional de Clima. As fraturas sociais, projetadas na citação jorgebenjiana - "Eu mó, num pa, tro pi, ca cal" - e a indigência do espaço público, antevista caetanicamente - "Senhoras e senhores ele põe os olhos grandes em mim" - convivem com o lirismo viniciano - "Olho nos seus olhos vejo um bicho procurando capim" em Vem Pro Papai
(Clima e Nuno). A impossibilidade da felicidade na solidão.

Diferente do carcará politizado - "pega, mata e come" - o sujeito é enigma - "Cheguei, cara, carcará sem fome, prazer em conhecê-lo, vê se advinha meu nome" (Carcará Sem Fome) -, assim como o lugar em que habita. Seu lugar de canto. O verismo da ópera, "o mundo real" (o fim da representação), a vida cotidiana, o fim das lendas, da imaginação, da comédia. "Tento dizer mas não tento, o meu silêncio tem razão, meu canto é sem dor sem medo", escreve Romulo em Eu Não Duro (Clima / Romulo Fróes). E deste marco zero nasce o grão da voz do sujeito cancional criado (coletivamente) por Clima. O canto só é possível por contatos e deslocamentos: "Ouro de um cego que enxergará, morte de um cego que cegará, reza de um cego que enxergará, mito de um cego que cegará, nada de um cego que enxergará" (Puro Não). Afinal, se "Mar sertão, virou só um filme", os elementos sensacionais da vida entram nas canções sem grandes traumas estéticos: "vai ter dor e samba" ("desde que o samba é samba é assim"). Samba, batuque, coco - "o couro do pandeiro quer a minha mão", diz em Coco (Clima) - e a forma orgânica como uma faixa passa a outra, convoca a outra, reforçam a autonomia do disco objeto vivo. É Canio, é o samba, é o lugar. Lugar solar que "é de quem abre, a pálpebra e corta, o cristalino e enfia , a lua lá dentro", escreve Nuno na letra de Cão Andaluz (Clima / Nuno Ramos). O cinema de Buñuel e Dalí ensinou. E quem está disposto ao desperdício do olho, do dinheiro, do container, da poesia? "A tela branca apodreceu", na letra de A Noite (Clima). O cinema virou igreja. Sem sinos.

E a Batata?, pergunta o título da canção de Clima e Nuno. “A batata está assando”, diz o dito popular. Em ritmo marcial, as marchinhas arrastam o olhar passional: "O tempo é de sol, mas o meu corpo pede escuridão", anota Romulo em Não Tem Perdão (Clima / Romulo Fróes), depois de ter escrito que "De dentro da cabeça vem um som, que me levanta e faz tremer o chão". Está lá no capítulo XI, Quincas Borba, Machado de Assis: "Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais feitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas".


Desperdício de referências, metáforas, metalinguagens. "A lama sente prende a presa pelo cheiro, a violência é a maré dessa cidade" (Não Mete a Mão). É a eterna história do cantor-bufão cuja meta é cantar e fazer cantar. Operação natimorta. "E que vantagem Maria [ia, ia, ia] leva com isso?", pergunta Clima na derradeira Eu Sei Que Ele Foi (Clima). Os sinos voltam a dobrar. Por quem? "Passou, quem sabe a foto ficou" (Passarinhos Perdidos). As fraturas da mensagem cantada – surreal, absurda, trágica, cotidiana – são o sentido em si, o “não” duro à falta de sentido da existência: tão frágil quando vivida e quando cantada. Mas agora já não é Pagliaccio, nem Canio. Agora sou eu: o ouvinte. O dobrador de sinos.

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