LA COMMEDIA É FINITA - Clima (2019)
Produzido por Romulo Fróes e Clima
Direção artística: Romulo Fróes
Gravado nos estúdios YB por Carlos “Cacá Lima”
Assistente de gravação: Frederico Gomes
Mixado e editado no Fine Tuning por Daniel Bozio
Masterizado por Carlos “Cacá” Lima
A&R: Maurício Tagliari
Label manager: Benoni Hubmaier
Projeto gráfico: Mono_Julio Dui
Fotos de capa e encarte: Louie Martins
Figurino: Giovana Moretto
Todas as faixas editadas por Alternetmusic
Faixas:
01. La commedia é finita (Clima)
02. Passarinhos perdidos (Clima / Nuno Ramos)
03. Carcará sem fome (Clima / Nuno Ramos)
04. Vem pro papai (Clima / Nuno Ramos)
05. Puro não (Clima / Nuno Ramos)
06. Eu não duro (Clima / Romulo Fróes)
07. Não mete
a mão_ vinheta (Clima / Nuno Ramos)
08. Coco (Clima)
09. Cão
andaluz (Clima / Nuno Ramos)
10. A noite (Clima)
11. Não tem perdão (Clima / Romulo Fróes)
12. E a batata? (Clima / Nuno Ramos)
13. Não mete a mão (Clima / Nuno Ramos)
14. Eu sei que ele foi (Clima)
14. Eu sei que ele foi (Clima)
Clima_ La Commedia é Finita (2019)
Por Leonardo
Davino
O Dobrador de sinos
As canções
de Clima miram a desadjetivação, ou melhor, miram o excesso, o desperdício de
adjetivos utilizados para o entendimento deste Brasil pa-tro-pi-cal. A saber, a
palavra "desperdício" aparece três vezes nas letras do disco La Commedia é Finita. Duas vezes em
"Cão andaluz" (Clima / Nuno Ramos) - "Desperdício de um
astro"; "Desperdício de uma bruxa" - e uma vez em "Eu sei
que ele foi" (Clima) - "Do que é que ele morreu? Desperdício".
Se as duas primeiras citam a profusão de montagens surrealistas do cinema de
Luis Buñuel e Salvador Dalí, o excesso de luz que cega; a segunda convoca o
ouvinte para a reflexão sobre o excesso imagético natimorto deste país. A referência
cinematográfica não é à toa. Há mais transliguagens aqui. Em La Commedia é Finita, Clima apresenta um
ensaio verbivocoperformático sobre os sons, imagens e palavras que compõem a
nossa vida sensível. País que não é país: imagens, visões, capricho. E faz isso
criando uma persona cancional cuja alma pode ser encarada como a ânima em pena
de Canio, protagonista da ópera "Pagliacci", de Ruggero Leoncavallo
(1892), autor da famosa frase que Clima tomou para título de seu disco-ensaio-projeto:
"La commedia è finita".
No entanto,
se na ópera é Canio quem pronuncia a frase-diagnóstico ao assassinar Nedda, sua
mulher, dando fim à encenação, a mesma frase aparece no disco em seu prólogo,
ou seja, na primeira canção, a que dá nome à obra de Clima. Temos aqui uma
condensação - o mote - da trama do disco em frases, versos, sons e ritmos que
voltaremos a ouvir ao longo da audição: por exemplo, mergulhada sob os samples
e ruídos, ouvimos a atriz Helena Ignez dizendo "Sub-planeta, planetazinho
vagabundo, o sistema solar é um lixo", uma de suas falas no filme Sem Essa, Aranha (1970), de Rogério
Sganzerla. Sem contar as badaladas de sinos. "Por quem os sinos
dobram?", perguntaria John Donne, e depois Ernest Hemingway, e depois Raul
Seixas. É o absurdo da (sempre iminente) guerra civil. São também os sinos de
Pagliacci, de quando Canio estremece em si o desejo de vingança e revela-se
demasiado humano. Lírica (um crime passional) e sociedade (um universo
desencantado). Imagens sonoras dançam para o ouvinte. O palhaço sou eu. O
palhaço somos nós: "Eu não presto pra coroa eu não presto pra cara",
canta o sujeito de Passarinhos Perdidos
(Clima / Nuno Ramos) sem querer tomar partido. Do meio dos ruídos surge também a
voz de Juçara Marçal em vocalizes de algo que nasce, que morre, agoniza, quer vingar.
O samba? A respiração dá o tom ritualístico. Anunciação. Agouro. Lamento.
Desejo. A eterna busca do núcleo duro da existência, tão presente na obra de
Clima e seu caos dançante: "Eu só sei que estou fora do pão das
estrelas", cantará mais adiante.
Abre-se o
convite: "Dessa vez quem vai pagar, vai pagar a diversão, vai viver a vida
dentro do meu colchão", escreve Romulo Fróes, diretor artístico do disco,
em Eu Não Duro (Clima / Romulo Fróes).
Retornam os "Passarinhos perdidos" que "cantam a rima da glória
com a minha miséria". Cria-se "um mini-céu comum" para sujeito e
ouvinte, como sugerido em Puro Não
(Clima / Nuno Ramos). Estabelece-se um pacto do diagnóstico a ser cantado e
declamado nos pouco mais de quarenta minutos do projeto cancional de Clima. O
ouvinte já sabe, o sujeito cancional também, resta agora glosar o mote-título:
metaforar. "Um filho vivo no mundo o que seria?", pergunta em Não Mete a Mão (Clima / Nuno Ramos). Ousamos
responder: desperdício.
Se aberto às
intervenções do ouvinte, o disco de Clima precisa ser urdido em exigências para
que este ouvinte não ingênuo não se sinta ludibriado. "Dou minha carne pro
vento, o meu vento é de fome" canta em Passarinhos
Perdidos, ave-carcará que é. De tanto comer (desperdício!), enjoa. Seu
canto é o resultado de uma azia referencial: "E a mulher se farta, quando
tudo se oferece ao amor, ao ator, ao pastor ao cantor", diz o Carcará Sem Fome (Clima / Nuno Ramos). Múltiplas
citações. Vários diálogos internos. Dito de outro modo, o sujeito cancional de La Commedia é Finita incorpora a
angústia que move Canio, o não ingênuo, o que sabe da traição. O nome do disco
é a senha de acesso para ouvirmos um sujeito cancional estranho, surreal e
absurdo porque obviamente humano. "Ninguém vê, só que tá na cara", canta
o sujeito na já citada Não Mete a Mão.
Talvez seja isso, e "Passarinhos perdidos na minha janela, cantam a rima
da glória com a minha miséria, contam que o tempo do ato é o tempo da espera, e
o que resta pra ti é cimento e matéria" (Passarinhos Perdidos). O sujeito cancional narrador combina lírica
e tragédia, drama e épica embaralhando com rara beleza os gêneros, os fios da emergência
e da crença. Urge desabrir o olho: "Uma vidente sem um olho é poesia"
(Não Mete a Mão). Vida coletiva e experiência
subjetiva são tocadas com o sentimento ambivalente necessário à apreensão do
Brasil, essa "brutalidade jardim" oswaldiana que encara os problemas de
frente, mas que transcende em sua complexidade inata: desperdício.
Aliteração:
"Asas, asas, as asas, as asas tão frágeis" (Passarinhos Perdidos). Estamos num tempo prévio ou póstumo à
cristalização do Brasil que conhecemos? "Quem fez a gente, se a gente não
é um lixo, se a gente é preta, é mongol, é dor de dente" (Não Mete a Mão). Essa indefinição move o
sujeito cancional de Clima. As fraturas sociais, projetadas na citação
jorgebenjiana - "Eu mó, num pa, tro pi, ca cal" - e a indigência do
espaço público, antevista caetanicamente - "Senhoras e senhores ele põe os
olhos grandes em mim" - convivem com o lirismo viniciano - "Olho nos
seus olhos vejo um bicho procurando capim" em Vem Pro Papai
(Clima e
Nuno). A impossibilidade da felicidade na solidão.
Diferente do
carcará politizado - "pega, mata e come" - o sujeito é enigma -
"Cheguei, cara, carcará sem fome, prazer em conhecê-lo, vê se advinha meu
nome" (Carcará Sem Fome) -,
assim como o lugar em que habita. Seu lugar de canto. O verismo da ópera,
"o mundo real" (o fim da representação), a vida cotidiana, o fim das
lendas, da imaginação, da comédia. "Tento dizer mas não tento, o meu silêncio
tem razão, meu canto é sem dor sem medo", escreve Romulo em Eu Não Duro (Clima / Romulo Fróes). E deste
marco zero nasce o grão da voz do sujeito cancional criado (coletivamente) por
Clima. O canto só é possível por contatos e deslocamentos: "Ouro de um
cego que enxergará, morte de um cego que cegará, reza de um cego que enxergará,
mito de um cego que cegará, nada de um cego que enxergará" (Puro Não). Afinal, se "Mar sertão,
virou só um filme", os elementos sensacionais da vida entram nas canções
sem grandes traumas estéticos: "vai ter dor e samba" ("desde que
o samba é samba é assim"). Samba, batuque, coco - "o couro do
pandeiro quer a minha mão", diz em Coco
(Clima) - e a forma orgânica como uma faixa passa a outra, convoca a outra,
reforçam a autonomia do disco objeto vivo. É Canio, é o samba, é o lugar. Lugar
solar que "é de quem abre, a pálpebra e corta, o cristalino e enfia , a
lua lá dentro", escreve Nuno na letra de Cão Andaluz (Clima / Nuno Ramos). O cinema de Buñuel e Dalí
ensinou. E quem está disposto ao desperdício do olho, do dinheiro, do
container, da poesia? "A tela branca apodreceu", na letra de A Noite (Clima). O cinema virou igreja.
Sem sinos.
E a Batata?, pergunta o título da canção de Clima e Nuno. “A batata
está assando”, diz o dito popular. Em ritmo marcial, as marchinhas arrastam o
olhar passional: "O tempo é de sol, mas o meu corpo pede escuridão",
anota Romulo em Não Tem Perdão (Clima
/ Romulo Fróes), depois de ter escrito que "De dentro da cabeça vem um
som, que me levanta e faz tremer o chão". Está lá no capítulo XI, Quincas Borba, Machado de Assis:
"Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas
chegam para alimentar uma das tribos que assim adquire forças para transpor a
montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas
tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se
suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso é a destruição; a guerra
é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a
alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os
demais feitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações
não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que
lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa
canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao
vencedor, as batatas".
Desperdício
de referências, metáforas, metalinguagens. "A lama sente prende a presa
pelo cheiro, a violência é a maré dessa cidade" (Não Mete a Mão). É a eterna história do cantor-bufão cuja meta é
cantar e fazer cantar. Operação natimorta. "E que vantagem Maria [ia, ia,
ia] leva com isso?", pergunta Clima na derradeira Eu Sei Que Ele Foi (Clima). Os sinos voltam a dobrar. Por quem?
"Passou, quem sabe a foto ficou" (Passarinhos
Perdidos). As fraturas da mensagem cantada – surreal, absurda, trágica,
cotidiana – são o sentido em si, o “não” duro à falta de sentido da existência:
tão frágil quando vivida e quando cantada. Mas agora já não é Pagliaccio, nem
Canio. Agora sou eu: o ouvinte. O dobrador de sinos.